Como matar uma estatal – Artigo de Herbert de Souza – 1990

Hoje, dia 09 de agosto, faz vinte anos que morreu o irmão do Henfil.

No princípio, era apenas o parente do famoso cartunista, para depois se transformar no farol mais cristalino dos caminhos do Brasil. Nós o conhecemos em Furnas, simples, quase tímido, buscando ensinar às empresas estatais o real papel que lhes cumpria desempenhar na sociedade. Usava uma expressão para designá-las que se tornou emblemática para os tempos seguintes: “empresas cidadãs”.

Existiam com o propósito de servir ao homem, mas deveriam agir de modo a trincar as suas desigualdades. Betinho enxergou nas empresas uma referência e uma alavanca para o equilíbrio social. “Quem tem fome, tem pressa”. Também Betinho tinha pressa. Precisava de mais tempo para satisfazer a saciedade dos famintos.

A terrível doença que teimava em não lhe deixar em paz, se tornava a cada dia mais inclemente, mais impiedosa. Isso não impediu que Betinho subjugasse essa terrível serpente, inúmeras vezes, e prosseguisse com a sua missão de ombrear o ser humano a qualquer outro ser humano, como a medida e o fim de todas as coisas, com direitos e deveres iguais.

Os mais jovens não conheceram Betinho, pobres jovens, têm essa enorme desvantagem porque não compartilharam do convívio de um filho iluminado da nação. Eles precisam acreditar que essa terra, hoje árida de grandeza humana, gerou um homem assim. Uma única vez formulou um pedido: queria pescar, acompanhado de seu médico, no lago da Usina de Funil. A autorização da empresa chegou tarde, muito tarde.

Betinho, felizmente, não passou por essa terra tal qual um meteoro que não deixa rastro, logrou imprimir aqui, em brasa, para sempre, a digital da sua história, de uma vida sem fissura, de amor ao próximo.


 

O Artigo abaixo é de Herbert de Souza (Betinho) escrito em 1990! Por incrível que pareça, permanece totalmente atual.

É interessante ler um artigo de 27 anos de idade com essa triste e surpreendente validade. Basta substituir alguns personagens e o artigo parece ter sido escrito hoje!


 

Elas levam tempo para nascer e para morrer, porque, ao contrário do que pensam certos economistas agora em Brasília, elas não são seres sem sentido histórico. No Brasil, elas começaram a crescer no tempo de Getúlio e depois não pararam de se desenvolver. Às vezes seguindo a onda nacionalista, mas também na onda internacionalista do período militar. No período Sarney, as estatais sofreram o que todos sofremos — a vingança da incompetência. Agora, com Collor, foi prometido o ataque final da privatização.

Esta variação, no entanto, tem um sentido. Quando as estatais servem ao capitalismo, elas são criadas, desenvolvidas, prestigiadas, louvadas e promovidas. Quando o conjunto da sociedade pode tirar proveito delas, ou elas não servem mais e até competem com certos setores capitalistas, a coisa vira e as campanhas antiestatais prosperam. Vivemos agora a moda antiestatal, e o governo está encontrando alguma dificuldade em levar adiante o seu programa de privatização, porque não é fácil destruir em alguns meses o que foi construído ao longo de muitas décadas. Aqui vai, no entanto, uma modesta contribuição para ajudar o presidente Collor a cumprir esta tarefa que o colocará na história como o coveiro das estatais. Para se destruir uma estatal é necessário realizar as seguintes medidas;

Produzir com eficiência e vender abaixo do custo

Dado que as estatais no Brasil existem para atender aos interesses das grandes empresas transnacionais e nacionais e, secundariamente, para defender alguns interesses nacionais, é fundamental dotá-las inicialmente de uma boa base técnica, para que os produtos ou serviços sejam bons, e vendê-los abaixo do custo para garantir os lucros dos seus usuários privados. A eletricidade, o petróleo, o diesel, o ferro e o aço são os melhores exemplos. A Companhia Siderúrgica Nacional vende bobinas e chapas de aço pela metade do preço do mercado mundial para as montadoras da indústria automobilística. Ao vender abaixo do custo, estatais como a CSN entram no vermelho, passam a ser deficitárias e a ser apresentadas como “exemplo ideal” de estatais: maus negócios, incompetentes, destinadas ao fracasso. A maior parte dos subsídios dados, quase de graça, pelo poder público à chamada livre iniciativa, assume essa forma. A CSN que o diga.

Contrair dívidas no exterior

Uma ‘boa” estatal deve servir para contrair dívidas no exterior e transferir os recursos para outros setores deficitários ou simplesmente para os recursos do Tesouro em momentos de crise. Que o diga a Eletrobrás. Ao contrair as dívidas, as estatais ficam na mira das pressões internacionais e. por que não, de seus interesses. Afinal, uma estatal é um bom patrimônio em caso de negociação, venda ou alienação. A pressão da dívida imobiliza a capacidade de investimento e reinvestimento da estatal. Essa é uma boa fragilidade a ser utilizada quando necessário.

Não investir em pesquisa e desenvolvimento

Conter os investimentos programados. Esta política tem como objetivo colocar as estatais na fronteira da vulnerabilidade. Uma estatal muito eficiente é um mau exemplo no mundo dos negócios como argumento pró-estatização. Uma estatal ineficiente é um argumento imbatível sempre que for necessário restabelecer o primado neoliberal da livre iniciativa e das leis do mercado. O pior é quando a estatal vira símbolo de eficiência, como a Petrobrás ou a Vale do Rio Doce — faca de dois gumes que dá lucro e dor de cabeça. Para salvar a cabeça, o capital, às vezes, prefere acabar com as estatais que lhe dão lucro. Uma estatal atrasada perde a credibilidade e pede para ser alienada como bem público.

Colocar afilhados civis e militares na direção das estatais

É fundamental dirigir politicamente as estatais, retirá-las do domínio do bem público. Para isso deve- se colocar à frente das estatais dirigentes que respondam pelos interesses de turno à frente da Presidência da República. No período Geisel, tudo pelas estatais. No período Collor, tudo contra as estatais. Esse empreguismo político tem como objetivo não somente dirigir as estatais segundo os princípios da política econômica de turno, como pretende também desestabilizar sua base ética de sustentação. Ao se privatizar a direção de uma estatal, ela perde o seu carisma público. Ao se politizar ou partidarizar a direção de uma estatal, ela fica indefensável aos olhos do público. Empresa fragilizada, empresa privatizável. Sarney fez a sua parte. Collor arremata. Afinal, eles já combinaram outras coisas.

Provocar os sindicatos

É importante também provocar os sindicatos e levá-los a situações de impasse. O desgaste progressivo dos sindicatos é uma boa preparação para a privatização. Sindicatos fracos, privatização forte. Sindicatos colocados diante de dilemas, de situação sem alternativa, de derrotas sucessivas, do cansaço das lutas sem futuro, das tensões intermináveis, dos confrontos com as Forças Armadas, têm um papel na trama. Quem sabe um dia eles não estarão pedindo pelo amor de Deus uma solução qualquer, ou um empresário qualquer que venha nem que seja para garantir o emprego de todos? Quando se vende abaixo de custo, o culpado não aparece. Quando os operários param os fornos, o culpado tem nome — chama-se sindicato, ou CUT. Uma empresa que vive em crise tem baixa cotação no mercado. A privatização gosta de preços baixos, principalmente de empresas públicas que acumularam durante décadas o patrimônio que foi construído com o dinheiro e o esforço de todos.

Desenvolver os impasses até o absurdo

É preciso esticar a corda até o fim, com ciência e paciência. E preciso vencer a lógica da própria acumulação capitalista. Afinal, não é usual no capitalismo desperdiçar riqueza acumulada. Nesse caso é diferente. E preciso ter coragem para dizer que até a Petrobrás pode ser privatizada, que a eletricidade pode ser um bom negócio nas mãos da iniciativa privada, que os telefones, as rodovias, as hidrovias, os portos, as praias, afinal de contas, podem ser muito mais bem administradas pelo gerente de turno que pelo administrador público submetido ao controle da sociedade. Afinal, a memória já é coisa do passado. A eletricidade era da Light, que por sua vez era da Brascan, que é uma transnacional canadense. O petróleo, para ser nosso, foi uma longa história, onde um tal de mister Link jurava por Deus que no Brasil só dava goiaba, petróleo nunca. E, para quem é da época, é fácil lembrar: o Repórter Esso confirmava! Afinal, essa coisa de entreguista parece que não tem Ibope porque agora todo mundo, e principalmente o Collor, só quer saber de ser primeiro mundo. Pena que vivem no Brasil. Por isso, é necessário levar os impasses entre as empresas estatais e o desenvolvimento do país ao extremo, para que o absurdo pareça ser a solução e a solução que convém a uns poucos acabe nascendo, como resultado natural do absurdo.

Vender ou fechar

Para se completar a obra só falta vender a estatal para aqueles grupos que participaram da confecção da lista ou então fechá-las, como ato final, se nada der certo e a sociedade não for capaz de se pôr de pé para defender o que é seu. Do jeito que a coisa vai, na medida em que a sociedade brasileira não se levanta, parece que se vai é vender e fechar. E pensar que tudo isso que será dado, vendido ou fechado, foi construído com os impostos pagos por todos nós.

 

 

 

 

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