O Próximo Verão

Globo 01/12/98


Tijuca, Andaraí, Grajaú, Vila Isabel e Rio Comprido sem luz


RIO, 1 – Uma ruptura na linha subterrânea da Light no Morro da Formiga está deixando sem luz os bairros da Tijuca, Andaraí, Grajaú, Vila Isabel e Rio Comprido desde as 17h, prejudicando 120 mil clientes, inclusive o hospital do Andaraí. A linha reserva está em manutenção e com o defeito na linha principal, que atingiu três subestações, vários sinais estão desligados, o que está tumultuando o trânsito nas principais ruas desses bairros. A Light informou que o problema deve ser resolvido ainda hoje.
JB, 02/12/1998



O Próximo Verão

Com a aproximação do verão 98/99 é natural que cariocas e fluminenses tenham sua atenção voltada para a questão do suprimento de energia elétrica aos seus domicílios, empresas, etc…, em função das freqüentes interrupções no suprimento de energia elétrica ocorridas entre dezembro e março passados, e que ocasionaram, além do desconforto, prejuízos materiais variados.


O que devemos esperar para o próximo verão?


Um breve histórico: com a privatização das concessionárias Light e Cerj, responsáveis pelo suprimento de energia ao Estado do Rio, os novos donos promoveram uma significativa reestruturação, que, além das mudanças no organograma das empresas incluiu também a inclusão de novos procedimentos, como por exemplo a adoção de nova conceituação para definição dos próximos investimentos, estabelecendo-se, enfim, um novo processo decisório.


Como é comum nas privatizações, foi estabelecido um programa de demissões (nem tanto) voluntárias em ambas as empresas.


A conseqüência mais imediata deste conjunto de ações foi a retração de investimentos e a falta de pessoal capacitado para a operação satisfatória do sistema elétrico, num momento em que o consumo de energia elétrica crescia em níveis significativos – da ordem de 5% ao ano.


É compreensível que os novos acionistas de Cerj e Light ­ espanhóis e portugueses, na Cerj; franceses e norte-americanos, na Light – com base na experiência dos seus países, onde o consumo de energia elétrica cresce a taxas mínimas, trouxessem uma visão mais estática da gestão operacional de uma empresa de energia elétrica. Dito de outra forma: como o consumo de energia elétrica naqueles países é praticamente o mesmo de um ano para o outro, é de se supor que as obras implantadas e ações adotadas para a operação do sistema num ano possam garantir o mesmo grau de atendimento no próximo período… naqueles países.


Esta suposição, é, entretanto, inaplicável à realidade brasileira, frente à dinâmica do nosso mercado. Esta lição foi duramente aprendida pelos novos acionistas de Cerj e Light, em função da grande insatisfação popular gerada com os freqüentes cortes de energia e também em função das multas aplicadas a estas empresas pela Agencia Nacional de Energia Elétrica – ANEEL – a partir de audiências públicas, ocorridas entre abril e julho de 1998.


Durante estas audiências foi inclusive mencionada a possibilidade de que Cerj e Light pudessem ter as suas concessões cassadas, caso as freqüentes interrupções de energia elétrica continuassem a ser registradas.


É de se supor que os administradores daquelas empresas tenham se conscientizado quanto à necessidade de se manter o nível de investimentos e o quadro de pessoal em patamares compatíveis com a dinâmica do mercado consumidor do Estado do Rio.


Na realidade, as informações disponíveis dão conta de que as empresas estão revendo a sua programação inicial no sentido de melhor se ajustar às necessidades do mercado: a Light programa investimentos de R$ 415 milhões, R$ 70 milhões a mais do que o previsto inicialmente para este ano, montante que possibilitaria, entre outros benefícios, a instalação de 12 mil novos transformadores. A Cerj, por sua vez, informa que planeja um reforço no seu sistema de distribuição com a implantação de 6 novas subestações.


É bastante provável, confirmadas estas informações, que no verão 98/99 não venham a ser registrados os mesmos inconvenientes quanto à interrupção do fornecimento de energia no que se refere à malha de distribuição, que afetaram o atendimento aos bairros das cidades de Niterói e Rio de Janeiro.


Assim, considerando-se minimizada a possibilidade de deficiência na malha de distribuição, é conveniente, neste ponto, voltar a atenção globalmente para o próprio sistema de geração e transmissão de energia elétrica. Tal sistema é constituído por: 1) usinas geradoras de energia, 2) sistema de transmissão em grosso e 3) rede de distribuição local.


Cada um destes segmentos é capaz de, por sí só, provocar distúrbios ou cortes no fornecimento de energia elétrica aos consumidores.


Considerando-se que a malha de transmissão em grosso é, essencialmente, interligada, decorre daí que deficiências no segmento geração, que afetem o balanço consumo – oferta, tendem a provocar distúrbios sistêmicos, afetando todos os consumidores, no nível nacional, além, portanto, das fronteiras estaduais.


A deficiência de geração pode se dar de duas formas distintas: 1) falta de capacidade instalada para atender à demanda do pico de consumo de energia (consumo correspondente, em geral, ao período das 18 às 20.00 horas) e 2) falta de capacidade para a produção de energia para atendimento à demanda horária.


Ambas as deficiências apontadas, salvo situações excepcionais, como a ocorrência de fenômenos adversos da natureza que possam prejudicar diretamente as instalações de produção, são decorrentes de falta de investimentos ou, mais remotamente, de planejamento.


Deficiências na rede de transmissão em grosso, ainda que em certos casos possam afetar grandes extensões (como possíveis defeitos nos troncos de transmissão da usina de Itaipu) e portanto extremamente inconvenientes, tendem a provocar distúrbios circunscritos à uma certa região territorial englobando um ou, eventualmente, mais (poucos) estados.


Deficiências na malha de distribuição provocam colapsos locais, afetando um ou mais bairros. São os black-outs “pipoca”, exatamente do tipo que presenciamos durante o verão passado, quando era comum se transitar por bairro às escuras, na vizinhança de outro satisfatoriamente abastecido. Conforme apontado anteriormente, é bastante provável que este tipo de deficiência não ocorra no próximo verão, em função dos investimentos que Light e Cerj informam estar providenciando.


Cabe fazer uma avaliação referente ao impacto que alterações nos segmentos “geração” e “transmissão em grosso” possam causar no atendimento ao Estado do Rio.


No que se refere ao segmento da geração, deve-se considerar que a decisão do governo de privatizar o setor transferiu para a iniciativa privada (não individualmente para cada empresa) a responsabilidade pela continuidade da manutenção da oferta das empresas de energia elétrica.


O fato da responsabilidade pelo atendimento passar a ser do “mercado” em geral, não sendo imputável a este ou aquele agente, tem como benefício teórico a perspectiva de que a competição pelo atendimento aos consumidores possa trazer uma redução no preço do insumo energia elétrica.


Entretanto, tal abertura para o mercado livre, dada a atual conjuntura e a incipiente experiência quanto a operação de um mercado livre de energia, trás como desvantagem, e estamos presenciado isto, a perspectiva de que em períodos de crise ou incertezas os agentes mantenham seus investimentos retraídos. Nestas circunstâncias qual ou quais agentes poderão ser responsabilizados pela eventual incapacidade do sistema interligado não conseguir atender à demanda nacional?


Ocorre que a base da oferta de energia elétrica brasileira é constituída por usinas hidráulicas, projetos que têm vantagens ambientais em função da não emissão de gases oriundos da combustão de materiais fósseis, como no caso de usinas térmicas, têm baixo custo operacional, além de não pressionar a balança comercial pela necessidade de dólares, posto que a tecnologia de base hidráulica tem amplo domínio nacional.


Em contrapartida, empreendimentos de geração de base hidráulica têm longo período (relativamente) de maturação, têm custos de implantação superiores comparativamente aos projetos de base térmica, além de demandar longa tramitação junto aos organismos de preservação ambiental para a obtenção das licenças pertinentes.


Considerando-se estes aspectos e porque os custos de implantação de projetos térmicos são da ordem de 50% inferiores aos dos projetos de base hidráulica, é natural que a iniciativa privada tenha preferência por projetos de geração elétrica de base térmica, ainda que dentro de uma visão econômica plurianual a vantagem de tais projetos seja questionável em função dos elevados custos de operacionais.


Entretanto, algumas incertezas trazem dúvidas quanto a garantia de que os novos projetos, que se supõe serem, em larga escala, de base térmica, possam ser implantados de forma compatível com o aumento da demanda. São elas:


1) A comercialização de energia num ambiente de livre competição, apesar de já estar delineada teoricamente, ainda não foi implantada na prática, o que pode vir a ser fator inibidor para a participação de novos agentes;
2) Projetos de base térmica necessitam da interveniência da Petrobrás, que é o agente legal para a comercialização em grosso do gás natural (o emprego de óleo combustível ou diesel para a geração de energia elétrica está fora de cogitação, em função do seu alto custo). As negociações com a Petrobrás não têm sido bem sucedidas, até porque a empresa sinaliza a intenção de participar diretamente no negócio de geração de energia elétrica;
3) A atual legislação não explicita as garantias para os recursos a serem tomados junto à instituições financeiras, o que pode, eventualmente, dificultar financiamentos para os novos projetos e
4) A crise asiática e seus desdobramentos podem inibir a participação de novos agentes no segmento de oferta de energia elétrica.


Este quadro de incertezas quanto à oferta, frente à perspectiva de que o mercado de energia tenha um crescimento na faixa de 2,6% ao ano para a área da Light e de 5,7%, ver referência (1), ao ano para a Cerj e de 5% globalmente para o Brasil, no período 1998 a 2002, faz supor dificuldades para a garantia do balanço oferta-geração. Tais índices, se confirmados, significam a necessidade de inversões na faixa de US$ 1.400 milhões anuais para a manutenção do equilíbrio entre oferta e demanda de energia.


É curioso mencionar a constatação apresentada na referência (1) no sentido de que existe uma componente inercial na dinâmica do mercado de energia elétrica que induz seu crescimento, mesmo com a economia em crise, fenômeno que se reflete no aumento da elasticidade-renda do consumo energia elétrica, que atinge valores significativamente superiores à unidade durante períodos de baixo crescimento econômico. Neste sentido não se poderia contar com uma providencial redução na evolução do consumo de energia elétrica, pelo menos no curtíssimo prazo, como seria esperado em decorrência da crise internacional e suas repercussões na economia brasileira.


Interessante mencionar os riscos de não atendimento ao mercado, também apontados na referência (1), para déficites de qualquer profundidade, para os anos de 1999 e 2000: 16% e 9% respectivamente. É significativa a observação incluída no texto em referência, que menciona a necessidade de que seja cumprido o cronograma das obras previstas, para que não haja uma degradação adicional nestes índices. Como ilustração deve-se lembrar que o índice de 5% é o limite superior para os estudos de planejamento.


Confirmando as indicações referentes à pouca motivação dos agentes quanto a implantação de novas obras, as informações disponíveis dão conta de que pouquíssimas obras estão de fato contratadas.


Passando-se para a análise da transmissão em grosso, menciona-se que está prevista a introdução do mecanismo de licitação para as novas obras de transmissão, e eventualmente o surgimento da figura do agente de transmissão independente de energia. Estima-se todavia que, no curto prazo, as obras de transmissão deverão a ser conduzidas diretamente sob responsabilidade do Estado.


Neste sentido destaca-se como obra fundamental, entre outras, para o atendimento ao Rio de Janeiroa duplicação da linha Angra-Rio 500kV, com a instalação de um segundo circuito em direção à cidade do Rio de Janeiro, previsto para entrada em operação ao final do ano. Esta obra está sendo conduzida por Furnas.


É conveniente, nesta altura, que se reproduza literalmente o seguinte trecho do documento “Plano Decenal de Expansão”, Eletrobrás, Abril de 98: “As restrições econômico-financeiras que limitam os investimentos do Setor Elétrico têm conduzido à postergação de inúmeras obras de transmissão com sérios reflexos no comportamento do sistema, através do aumento das perdas, deterioração dos níveis de tensão, sobrecargas em equipamentos e instalações, redução dos níveis de confiabilidade e, até mesmo, da situação extrema de não-atendimento a determinadas cargas.”


As medidas de contenção de despesas a serem adotadas pelo Governo podem trazer impacto na data de entrada em operação deste empreendimento, o que traria grande risco de corte generalizado de carga na área Rio durante alterações na rede de transmissão do sudeste.


Em resumo: o quadro analisado significa dizer que apesar de não serem esperados problemas de “black-out”, devidos à malha de distribuição, que afetaram principalmente o atendimento aos bairros das cidades do Rio de Janeiro e Niterói, a garantia da continuidade do suprimento de energia elétrica ao Estado do Rio estará dependente da entrada de novos projetos de geração no nível nacional e, principalmente, da duplicação do trecho Angra-Rio II.


Eventuais atrasos nestas obras poderão, sob certas condições, afetar extensas áreas, provavelmente todo o estado, situação que caracterizaria problemas de atendimento bem mais intensos do que os registrados no verão passado.


Cariocas, fluminenses e brasileiros, preparem-se: pode ficar pior!


(1) “Plano Decenal de Expansão 1998/2007”, Eletrobrás, Abril de 1998

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