O setor elétrico brasileiro e suas incertezas – Artigo

In energia elétrica on 05/10/2015 at 00:15

Por Renato Queiroz

No setor elétrico brasileiro a distinção entre crises no passado e no presente é apenas uma ilusão teimosamente persistente.

A geração de energia elétrica no Brasil foi estruturada com base em usinas hidroelétricas, aproveitando a situação privilegiada do país com grandes rios de planalto, abastecidos por abundantes chuvas tropicais. Hoje, a matriz de capacidade instalada de energia elétrica é bem mais diversificada, mas tem, ainda, a fonte hidráulica participando com mais de 65% (Figura 1).

 Figura 1 – Matriz de capacidade instalada de energia elétrica.

FONTE: MME – Boletim Mensal de Monitoramento do Sistema Elétrico Brasileiro de julho de 2015

Para escoar toda essa produção de energia elétrica das centrais geradoras aos centros de consumo, uma grande malha de transmissão foi sendo construída bem como inúmeras subestações. O sistema elétrico brasileiro hoje tem 126.652 km de linhas de transmissão instaladas (Figura 2).

Figura 2 – Matriz de capacidade instalada de energia elétrica.

FONTE: MME – Boletim Mensal de Monitoramento do Sistema Elétrico – julho 2015

Praticamente o Brasil todo é interligado, permitindo que as regiões troquem eletricidade entre si.  Os resultados na estruturação da matriz elétrica atual foram bem positivos e mostram que o setor foi uma escola para a formação de um conjunto de profissionais especializados como: engenheiros, físicos, matemáticos, economistas, biólogos, técnicos e projetistas que atuaram tanto no setor estatal como no setor privado com competência reconhecida no Brasil e no exterior.  A gestão institucional e o planejamento de médio e longo prazos trouxeram uma racionalização da operação e expansão da oferta de energia elétrica. Afinal, o Brasil com dimensões continentais é singular na geração hidroelétrica com sua malha de interligação do sistema elétrico em seu vasto território.

Mas para chegar até aqui o setor elétrico passou por várias crises. E parece que essa angústia de viver em crises não terminou.

Ao revisar os momentos de crise que o setor elétrico vivenciou no passado e o ambiente político-econômico do País, verifica-se que há semelhanças com a atualidade. E muitas ações foram equivocadas ou não trouxeram resultados positivos a longo prazo. Vale, ainda, refletir que muitas dessas ações ou ideias podem ainda estar sendo repetidas ou até sugeridas hoje em dia.  Ou seja, o ensinamento de que olhar o passado pode evitar a repetição dos mesmos erros nem sempre é verdade.

Há um fato comum nas crises: a grande teimosia de profissionais, gestores do setor, em não assumirem que o modelo setorial está em crise. Teimosamente ou cautelosamente custam a admitir que o timing para mudanças estruturais esteja passando e quanto mais são postergadas as decisões, mais a sociedade é afetada.  Certamente a decisão para mudar ou voltar atrás em medidas equivocadas cabe à hierarquia superior que está na esfera da política de governo. Há um reconhecimento entre atores privados e estatais do papel do Estado, atuando na coordenação e nas estratégias para atrair capital privado sempre na busca da segurança energética do País. Mas o mais grave é quando os técnicos se calam protegendo-se na premissa de que a decisão por mudanças está em um patamar superior e não querem receber recusas ou até advertências em suas propostas.

A estruturação do setor elétrico partiu de um arcabouço regulatório formalizado no Código de Águas em 1934, dando à União a competência de legislar, outorgar concessões de serviços públicos, antes regidos por contratos assinados com estados e municípios. Uma nova política do setor elétrico estipulou que a tarifa fosse fixada na forma de “serviço pelo custo”. O objetivo, segundo a legislação, era garantir ao agente prestador do serviço a cobertura dos custos de operação, cotas de depreciação e reversão à remuneração do capital investido.

As condições de restrições econômicas, que o Brasil sofreu em face da crise internacional decorrente da II guerra mundial, levaram o país a ter dificuldades em importar peças e equipamentos e outras restrições. No caso do setor elétrico, a estratégia foi o Estado passar a ser também um produtor de energia. Um exemplo foi a criação da companhia CHESF – Companhia Hidroelétrica do Vale do São Francisco – em 1945.  Nesse ambiente foi estabelecido um modelo centralizado de planejamento. A história do setor lista uma série de planos, comissões mistas até a formação de uma holding e subsidiárias para planejar e administrar a construção de usinas geradoras e de linhas de transmissão, bem como a sua operação. Surge a Eletrobrás.

O modelo foi sendo aperfeiçoado com bons resultados até a década de 70, quando há um comprometimento de sustentabilidade do setor elétrico por conta, sobretudo, de políticas econômicas. O setor elétrico foi usado como captador de recursos externos, bem como para controle da inflação com forte contenção de suas tarifas. O uso do setor para atender a diretrizes econômicas do governo afetou a remuneração garantida das empresas e um significativo passivo setorial foi se formando. O país passou a viver um período de recessão com uma desvalorização cambial com grandes reflexos no setor elétrico. Verifica-se que medidas pontuais de governo foram sendo criadas na busca de soluções. O resultado foi um grande desequilíbrio econômico-financeiro do setor elétrico brasileiro. Nesse ambiente os investimentos foram insuficientes para atender ao consumo de uma sociedade ávida de eletricidade.

Face à falência do modelo, já na década de 90, são estabelecidas regras buscando resolver a situação.  A Lei 8631/93, por exemplo, denominada no jargão do setor como “Lei de Encontro de Contas” ou “Lei Eliseu Resende” veio acalmar o inferno em que vivia o setor, trazendo alterações significativas. Um dos pilares dessa Lei foi expurgar o passivo setorial na busca de atrair o capital privado. Essa Lei, complementada por decretos e atos regulatórios, trouxe resultados positivos para o setor. Um deles, que era a preocupação do governo, foi a valorização do braço estratégico do setor, a Eletrobrás.  De fato, em menos de 2 anos, o valor de mercado da Eletrobrás subiu praticamente 10 vezes e a ação da holding chegou a ser uma das mais negociadas na Bolsa. No entanto, cabe registrar que o montante total da dívida de cerca de US$ 28 bilhões, nesse “encontro de contas”, foi para o Tesouro Nacional.

Veio o programa de estabilização econômica em 1994, o Plano Real, e com ele o Programa Nacional de Desestatização com a separação das atividades de geração, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica. Uma série de Leis e portarias foi estabelecida para a criação de um modelo privado/estatal no setor. Há avaliações de especialistas que, nesse conjunto de mudanças, muitas ações foram açodadas sem um planejamento estratégico para o País.  E um dos fatos mais emblemáticos que levaram muitos a desconfiarem do êxito das mudanças foram os apagões constantes nos estados do RJ e ES logo após a privatização das distribuidoras de eletricidade desses estados. Na ânsia de privatizar rapidamente algumas Concessionárias de eletricidade aplicou-se um modelo de privatização, mesmo sem uma entidade reguladora.

Com a implantação do modelo, um novo inferno de crise no setor parecia estar longe. Ledo engano. O diabo voltou com toda a força, trazendo a crise de geração de energia após medidas equivocadas de governo. O resultado foi o racionamento de 2001.

A saída foi chamar uma nova turma para apagar o fogo. Surge assim, em 2004, um novo modelo para o Setor Elétrico Brasileiro (SEB), sustentado pelas Leis nº 10.847 e 10.848 de 15 de março de 2004, e pelo Decreto nº 5.163 de 30 de julho de 2004. O profissional afeto ao setor conhece muito bem o que foi ajustado e introduzido quando da implantação dessa legislação. Não cabe aqui detalhar. Para muitos parecia que o novo modelo chegaria para resolver os riscos da falta de abastecimento de energia elétrica que causou tantos danos à sociedade. Uma esperança de preços módicos, que permitiriam à indústria e ao comércio trabalharem com baixos custos de eletricidade e proporcionariam à população contas de luz acessíveis aos seus bolsos, se extinguiu.

Como ocorreu em várias situações anteriores, quando o modelo começa a dar sinais de esgotamento, os gestores governamentais insistem em fecharem seus ouvidos a especialistas ou mesmo a seus técnicos que alertam para o risco de abastecimento. Demoram a tomar suas decisões. Assim, hoje, o setor elétrico vive driblando, com ações pontuais, uma crise de abastecimento. Uma verdadeira colcha de retalhos vem sendo criada sem um eixo central que estruture uma eficiente reforma do setor.

Há situações de dificuldades em todos os segmentos da cadeia, desde os geradores e distribuidores até os consumidores. O governo acusa S. Pedro, pois não chegam as esperadas chuvas para encherem os reservatórios, causando os riscos hidrológicos. Há especialistas afirmando que o grande culpado é o modelo do setor, incompatível com a realidade.

De concreto são os sucessivos aumentos dos preços da energia para os consumidores industriais, comerciais e residenciais. E não há perspectivas de reversão desse processo. As térmicas continuam em 2015 em pleno despacho trazendo custos elevados. Cabe lembrar que, anteriormente, os recursos do tesouro e empréstimos bancários foram acionados para cobrirem custos das Distribuidoras provenientes de compras de energia no mercado de curto prazo que chegaram a preços estratosféricos. Essa conta total deve ultrapassar R$ 37 bilhões e será paga em suaves prestações por quase 5 anos pelos consumidores. Agora, em um quadro de realismo tarifário, os consumidores arcarão com esses custos repassados pelas Distribuidoras nas revisões tarifárias.

De um lado os aumentos buscam recuperar as condições de investimentos das Distribuidoras. Por outro lado os consumidores vão ter seus custos de eletricidade aumentados. Mas será que essas medidas trarão fôlego suficiente para essas Concessionárias? A crise e o aumento de tarifas diminuem a demanda, o que reflete no faturamento dessas empresas. Há ainda os riscos hidrológicos das usinas cotizadas. Uma preocupação para o setor de distribuição.

Mas se não houvesse essa equação financeira, o setor quebraria? Certamente. Mas não foi um forte sinal de crise?  E por que isso não é admitido?  Teimosia para mudanças, incapacidade de governança no setor?

Do lado da geração há um inferno também. As geradoras nesse contexto foram obrigadas a cumprirem seus contratos comprando energia no mercado spot. A consequência foi a formação de um passivo financeiro que vai desaguar nas contas dos consumidores: o chamado GSF – Generating Scaling Factor que é a diferença entre a energia contratada pelas hidrelétricas e a que foi gerada (a menor).  Os órgãos de governo voltados ao setor elétrico demoraram a admitir que fosse necessário encarar esse imbróglio. E só recentemente editou uma nova Medida Provisória, MP 688, criando procedimentos para reduzir o risco dos geradores. Cabe explicitar que a MP 688 não satisfaz a todos os atores envolvidos nessa situação, o que leva a questionamentos jurídicos.

Para complicar a situação, vem a revolta das geradoras estatais federais. Com grandes prejuízos, enfraquecida financeiramente, a Eletrobras culpa a gestão do sistema. Certamente alguém já pensou em responder à holding com a expressão da língua portuguesa: “Agora Inês é morta”, o que significa “não adianta mais nada”.

A crise do setor elétrico é profunda, pois está no âmago do modelo.  Em consequência faltam: recursos financeiros, governança, maior integração do planejamento com a operação, confiança para manter a segurança energética, sobretudo quanto aos impasses ambientais e sociais na construção de usinas hidroelétricas na região norte e na conclusão da usina nuclear de Angra III.

As soluções para equacionar problemas à medida que vão surgindo podem se esgotar, chegando-se a um impasse.  Hoje a CCEE contabiliza mais de 10 liminares contra o déficit hídrico e o mercado teme inadimplência. A situação é preocupante.  Empresas com sobras de energia optam por vendê-las com valor mais baixo, pois não querem aguardar para liquidar os contratos na CCEE, face a um possível ambiente de inadimplência. Esse é um sinal mais do que vermelho para quem está sentado nas cadeiras de decisão do setor.

Uma das consequências dessa situação, que é muito ruim, é a falta de credibilidade dos investidores para o setor, dos agentes e até mesmo dos técnicos que para preservarem seus empregos se calam.

Importante, assim, é montar uma agenda para o amanhã do setor elétrico. Uma hipótese seria constituir um grande Comitê, Grupo de trabalho, Comissão ou similar para discutir uma nova modelagem para o setor elétrico. Um Grupo certamente capitaneado pelo Ministério das Minas e Energia com a presença de associações de indústrias, do comércio, de associações de geradores, distribuidores e produtores independentes, da Eletrobrás, como um agente de mercado estatal, e da Academia. O Grupo precisa ter respaldo e as soluções podem vir desses agentes que atuam no Brasil. Não se pode cair na tentação de buscar uma consultoria internacional, como outrora, com propostas trazidas de experiências de um ambiente diferente do País. Enfim, um novo acordo tem que ser alcançado.

Mas, ao contrário, se continuarmos aguardando as chuvas chegarem, a crise econômica e a crise política arrefecerem etc. para estruturar uma reforma no setor poderão surgir ideias como uma nova ilusão teimosamente persistente.

Nesse contexto o Grupo de Economia da Energia vem promovendo debates chamados “Caminhos para a Retomada” abertos à participação da sociedade. São convidados especialistas para contribuírem com uma discussão de uma agenda positiva para a crise da indústria de energia por que passa o País. Na última 6ª feira, dia 02 de outubro, na Casa da Ciência da UFRJ no Rio de Janeiro foi realizado um debate específico sobre a crise do Setor Elétrico Brasileiro.[i] O GEE estará disponibilizando nas próximas semanas, no seu Canal no YouTube, os vídeos das apresentações do evento.

Ao final do debate pediu-se a cada um dos debatedores presentes que apontasse em uma palavra o principal eixo de direcionamento para uma saída para a crise do Setor. As respostas foram: governança, sustentabilidade e eficiência econômica.

Referências:

MME – Boletim Mensal de Monitoramento do Sistema Elétrico (julho 2015)

Gomes A; Abarca C; Faria E; Fernandes E; (2009)- O Setor Elétrico – BNDES –www.bndes.gov.br acessado em 01 de outubro de 2015.

Guimarães G; (2001) – Consultoria Legislativa – Crise energética e Privatização (2001).

[i]  Participaram como debatedores: Fabio R. Zanfelice, diretor presidente da Votorantim Energia. José Luiz Alqueres, sócio-diretor da JL Alqueres Consultores Associados Ltda e conselheiro do Clube de Engenharia. Luiz Augusto Barroso diretor técnico da PSR. Roberto Pereira D´Araújo consultor e diretor do ILUMINA- Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico.

 

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