A reforma do setor elétrico: o desastre anunciado – Artigo

Ronaldo Bicalho (*)

Assim como o futebol, o setor elétrico não aceita desaforo. Tal qual a bola, o kW pune. Como um enigma, o setor elétrico atravessou os tempos devorando aqueles que não foram capazes de decifrá-lo.

Thomas Edison foi capaz de entender a natureza sistêmica do conjunto formado pelas atividades de geração, transporte e uso de eletricidade. No entanto, não foi capaz de lidar com os desafios que essa natureza impunha ao desenvolvimento desse conjunto.

Para isso foi necessária a genialidade de Nikola Tesla, que plantou as bases sólidas sobre as quais o setor elétrico, tal qual o conhecemos, foi erguido.

Samuel Insull inventou a empresa elétrica, definindo a organização da cadeia produtiva e das empresas elétricas. Contudo, perdeu-se na expansão explosiva e sem limites econômicos e sociais das empresas holdings na crise de 1929. Foi necessária a intervenção roseveltiana para colocar a indústria elétrica a serviço do desenvolvimento econômico e do bem-estar da sociedade.

Os liberais noventistas também tiveram suas ambições mercadianas enquadradas pelos estreitos limites das possibilidades competitivas impostos ao mercado elétrico e traduzidos de forma pedagógica na crise californiana.

No caso do setor elétrico brasileiro, cujas especificidades o tornam uma esfinge elétrica  mais traiçoeira do que as demais, a tentativa de mimetizar a experiência liberal dos anos noventa esgotou-se no apagão de 2001; ao passo que a experiência seguinte de construir uma solução que permitisse uma competição coordenada centralizadamente esvaiu-se nas ações desastradas de 2012, baseadas em uma interpretação voluntarista  de que havia se alcançado o equacionamento definitivo dos problemas do setor.

Diante de um novo ensaio de reforma que, pelos primeiros sinais, aponta na direção de um revival noventista, mediante uma turbinada no mercado livre, acompanhada de uma arriscada descentralização da gestão do risco, baseada em um conceito de separação entre risco e lastro pouquíssimo claro, as preocupações sobre o setor aumentam.

Considerando o contexto de fragilização institucional acelerada que atravessa o país, marcado por uma luta insana de todos contra todos, a proposta de alterar significativamente elementos fundamentais do marco institucional setorial atinge as raias da irresponsabilidade.

A possibilidade de se cometer erros gravíssimos, de consequências desastrosas para a evolução do setor, é elevada e não deve ser subestimada.

Essa possibilidade se torna maior quando se observa: a) os enormes desafios representados pela transição elétrica no mundo, resultantes da introdução massiva dos renováveis na matriz de geração; b) as dificuldades significativas advindas do esgotamento da nossa base hidráulica, elemento estruturante de toda a construção da nossa bem-sucedida experiência elétrica; c) a grande fragilidade atual das nossas instituições; d) o caráter embrionário, incompleto e inconcluso do diagnóstico e da base conceitual que pretendem sustentar a mudança do marco institucional do setor; essa reforma se configura claramente como um enorme desastre anunciado.

Se reformas muito mais estruturadas não foram capazes de garantir um desenvolvimento sustentável no tempo ao setor elétrico brasileiro, não será o atual esboço precário, sustentado por uma retórica primária, que irá fazê-lo. Nesse sentido, mais do que uma solução, o que se apresenta é uma cortina de fumaça, cujo principal objetivo é encobrir a disputa selvagem por privilégios, ativos e condições favoráveis entre os diversos interesses econômicos atuantes no setor. Assim, repete-se no setor elétrico a luta de todos contra todos que caracteriza o momento do país.

Como o setor elétrico não aceita desaforo, não há espaço para nenhum tipo de dúvida sobre os resultados finais desses eventos: um enorme desastre que vai atingir a todos e abortar qualquer possibilidade de utilizar os nossos recursos energéticos renováveis como alavanca de desenvolvimento econômico e bem-estar social.

(*) Pesquisador do Grupo de Economia da Energia do IE-UFRJ e diretor do Instituto Ilumina.

 

 

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