Eletrobrás: A biruta exposta ao vento partidário – Artigo na Brasil Energia

Roberto Pereira D’Araujo

Diretor do ILUMINA (Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético)

O ILUMINA sempre preferiu participar de debates técnicos, mas a atual crise política impõe um panorama incomum. Dado o predomínio absoluto das iniquidades da Petrobrás na mídia, outras distorções ficam muito ofuscadas. Hoje é impossível não tratar da questão política no setor elétrico, dado que partidos de ideologia supostamente opostas ditaram o seu rumo nos últimos 20 anos.

O principal eclipse desse longo caminho é a Eletrobras, que ainda é a maior geradora a América Latina. Nos seus 53 anos de história, teve um papel essencial na expansão do setor elétrico. Entretanto, apesar dessa performance, todos conhecem as “pedaladas” tarifárias usadas para conter a inflação na década de 80 que afetaram todo o setor e, principalmente, a Eletrobras. Chega a ser inacreditável que, com essa experiência anterior, se esteja repetindo o mesmo erro.

A privatização era vital para o plano de “modernização” do estado brasileiro no governo FHC. Independente do seu nexo, a estratégia adotada praticamente inviabilizou as pretensões, dado que, sob a perspectiva de aquisição de usinas prontas, o capital privado deixou de investir na expansão do sistema. As empresas da Eletrobras foram proibidas de aportar recursos, pois seriam privatizadas. A óbvia “trapalhada” resultou no racionamento de 2001, que, sob uma hidrologia longe de ser extrema, provocou um cerceamento de 25% da carga total com grandes prejuízos para a economia brasileira.

Com o impacto do racionamento na sociedade brasileira, o então candidato Lula obteve uma razoável vantagem. Em 2002, o Instituto Cidadania reuniu técnicos egressos das empresas federais, membros da academia, deputados, a então secretária de Minas e Energia do governo do Rio Grande do Sul, Dilma Rousseff e o próprio candidato. Ali foi assinado o documento “Diretrizes e linhas de ação para o setor elétrico brasileiro”, onde destacamos três propostas:

  1. A retomada do sistema de tarifas pelo custo do serviço, posto que tal medida reduz as incertezas e os riscos para produtores e consumidores. (……) 
  2. “Para evitar aumentos elevados das tarifas, serão prorrogados os contratos iniciais entre geradoras e distribuidoras, revogando-se na prática a abertura do mercado prevista para 2003. (….)”
  • “Será criado um novo modelo de gestão, que contemple o desenvolvimento organizacional e administrativo das empresas federais (…) subordinando-as ao controle pela sociedade. Haverá obrigatoriedade de estabelecer (…) contratos de gestão que assegurem administração transparente, realizada por profissionais competentes, definindo papéis e fixando prazos e metas, especialmente no que concerne à implementação dos planos setoriais de investimento, isoladamente ou em parceria com a iniciativa privada.”

Como se sabe, nenhum desses princípios foi adotado. Apesar das tarifas mais baixas, das diretrizes do relatório assinado, da possibilidade de negociações com o governo FHC e das evidências de absorção de prejuízo em função da queda abrupta de demanda pós racionamento, a descontratação das estatais em 2003 foi mantida.

Portanto, a partir de 2003, o Brasil implantou um bizarro mercado onde as usinas da Eletrobrás praticamente doaram energia firme para a expansão do mercado livre que, até hoje permanece sem a transparência necessária. Assim, como essas coisas que só acontecem aqui, um suposto governo de “esquerda”, escolhe uma estatal como a “patrocinadora” do mercado livre!

Muitos outros eventos mostram a permanência desse papel subserviente da Eletrobras, apesar de um governo que se elegeu com ideias opostas ao anterior. Nem é preciso lembrar da utilização de cargos para viabilização de uma discutível governabilidade.

Para enfatizar a bizarrice brasileira, a constituição de 88, ironicamente entendida como “estatizante”, preparou a mercantilização da energia. O conceito de “justa remuneração do capital”, constante da carta de 1946[1], foi substituído pela sacralizada “licitação”, deixando a definição da política tarifária para a legislação comum.

Essa decisão democrática e aparentemente isenta de ideologia desprezou óbvias diferenças físicas ao tratar a exploração de potenciais hídricos como qualquer outro serviço público. A diferença se dá por dois indiscutíveis aspectos: Usinas têm uma durabilidade muito acima da maioria dos ativos de serviços públicos e lidam com o recurso natural água, que, sob qualquer filosofia, é um bem público de primeira grandeza.

O “vento” sopra para o outro lado e a “biruta” muda de direção. Para atender reclamos da indústria que culpava os preços definidos em leilão por sua perda de competitividade, a lei 12.783/2013 provoca uma guinada de 180 graus na lei 8987/95 das concessões. Seu Art. 9º estabelece que a tarifa do serviço público concedido será fixada pelo preço da proposta vencedora da licitação e preservada pelas regras de revisão previstas nesta Lei, no edital e no contrato”.

Nessa guinada, inventou-se uma “prorrogação” antecipada das concessões sob outro enfoque onde a Eletrobrás é, mais uma vez, a vítima. As empresas deixam de ser concessionárias e se tornam “administradoras de ativos” que retornam à união[2], bizarra situação inédita no planeta. Para que? Recebem essa tarefa, desde que aceitem as irrisórias tarifas de O&M fixadas pelo governo[3].

Assim, sob um confuso cipoal ideológico, gerando um sistema de regulação instável e usando metodologias contestáveis, a Eletrobrás, mais uma vez, é sacrificada inutilmente, pois a tarifa continua atingindo recordes.

Em junho de 2014, o Tribunal de Contas da União já registrava perdas financeiras de R$ 792 milhões na rubrica[4] de provisões operacionais, devido aos gastos de O&M que ainda não foram autorizados pela ANEEL. Esse custo poderá ter dois destinos: aumento tarifário ou aporte do tesouro. Qualquer um dos caminhos termina no bolso do cidadão.

A Eletrobras tem prejuízo acumulado que já atinge R$ 15 bilhões. Seu preço de mercado caiu de R$ 26,5 bilhões em 2011 para R$ 9,7 bilhões em 2014. Adicionando-se essas perdas de capital aos danos já contabilizados no setor pelas decisões tomadas desde 2012, a impressionante perda já ultrapassa o total arrecadado no processo de privatização do setor da década de 90, o que deveria ser, no mínimo, uma lição.

Como se vê, a Eletrobrás, independente do grupo no poder, perde cada vez mais seu caráter institucional e mais parece uma “biruta” ao sabor do vento partidário. Recentemente, para conter gastos, administrou um programa de demissão incentivada como se fosse fácil encontrar pessoas experientes no setor.

Não se trata de defender a empresa, mas a pergunta que precisa ser respondida é: O que se pretende dela?

A inevitável e triste conclusão é que estamos no pior dos mundos: o país não sabe nem privatizar e nem gerir empresas públicas.


 

[1] É preciso deixar claro que tal sistema nada tem a ver com uma visão socializante ou de esquerda. Muitos estados americanos e províncias do Canadá ainda praticam esse sistema. Lá um concessionário só perde a concessão se descumprir o contrato.

[2] Os organogramas das empresas Furnas e Chesf mostram que, sob o ponto de vista econômico, elas não são mais estritamente estatais, uma vez que os ativos próprios são a minoria.

[3] No artigo “Mais um capítulo da infindável novela” publicado na edição de outubro de 2014, essas contas foram analisadas. A tarifa média das usinas atingiu R$ 7,67/MWh.

[4] Ver relatório do TCU TC 011.223/2014-6 de junho de 2014.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *