Um roteiro para não ser enganado com a crise elétrica

Um roteiro para não ser enganado com a atual crise do setor elétrico.

Não se enganem. Ao contrário do que é insistentemente afirmado por diversas autoridades do governo, a atual crise, que provocou uma verdadeira explosão de tarifas, foi insistentemente anunciada. Em 2010, num seminário na COPPE-UFRJ, com a presença de representantes do Ministério, da EPE, do ONS e da CCEE, o Ilumina mostrou evidências de que a atual situação poderia acontecer caso nenhuma atitude fosse tomada.

Antecipadamente, gostaríamos de enfatizar que consideramos a situação hidrológica atual como bastante severa. Vemos esse fenômeno com grande preocupação por sua possível relação com o desmatamento na Amazônia como têm alertado diversos climatologistas. Seja real ou apenas uma hipótese, esse é um assunto que o governo federal precisa atuar. Não há pior atitude do que ignorar o dado e considerá-lo apenas uma “versão”. 

Entretanto, contestamos o discurso do governo sobre o ineditismo dessa situação. O ano 2014 é seco, mas esse evento já ocorreu algumas vezes nos registros históricos e os sinais da crise já estavam claros desde 2009.

Além disso, algumas tendências preocupantes já eram evidentes, sendo o caso mais grave o do Rio S. Francisco, que mostra hidrologias declinantes há mais de 10 anos. Ou se atua sobre a bacia para tentar reverter essa tendência ou se incorpora a perda hídrica à base de dados reconhecendo a perda energética. O que é enganoso é nada fazer.

Apesar de óbvio, precisamos repetir:

Reservatórios se esvaziam se não entra água, mas também se esgotam por seu uso excessivo.


 Os gráficos

O gráfico I é obtido pela divisão da energia total resguardada nas usinas hidráulicas pela carga total. Esse é um formato muito conveniente de analisar o estado da reserva, pois indexada à carga, ele ganha certo significado. Se a reserva fosse medida em GWh, seria um dado abstrato, mas se é relacionada ao consumo em cada mês, ela passa a ter uma analogia com conceitos simples como a poupança.

Ele é um indicador essencial do grau de precaução na gestão (operação e expansão), já que a maior parte da nossa energia vem das hidroelétricas. O gráfico é também um retrato das políticas adotadas ao longo de um horizonte compatível com os prazos de investimentos, portanto, não se trata apenas de uma visão da operação. A parábola vermelha é simplesmente a linha de tendência dos dados, um “lugar geométrico” da curva de cor preta.

 

  1. A crise estava delineada desde 2009, como mostra a curva pontilhada. O declínio, além de ocorrer há 5 anos, ele se acelerou. Portanto, ninguém foi pego de surpresa.
  2. A aparente folga no período 2001 – 2007 foi proporcionada em grande parte pela retração do mercado ocorrida após o racionamento (a carga caiu 15%).
  3. Apesar de dispormos de muito mais térmicas hoje, a nossa reserva em dezembro de 2014 é bem inferior à ocorrida em 2001. Em 2001 chegamos a ter reservado o equivalente a um mês e meio. 
  4. O dado de janeiro de 2015 mostra uma reserva equivalente a pouco menos de 1 mês de consumo.
  5. Portanto, o risco de racionamento é real, pois as nossas térmicas só podem atender cerca de 30% da carga. Bastaria que o grupo hidráulico e outras fontes não conseguirem atender o resto para termos um racionamento.
  6. O tipo de térmicas que contratamos nesse período, pelo seu alto preço (óleo e diesel), acabou por exigir mais energia das hidráulicas e não menos, como o governo afirma e muitos parecem acreditar. Elas são computadas na oferta, mas na maioria do tempo, quem gera no seu lugar são as hidráulicas.
  7. Níveis baixos de reservatório afetam a capacidade das usinas hidráulicas gerar sua potência nominal, necessária na hora da ponta do consumo. Portanto, o apagão de 19/01 está completamente relacionado à situação da reserva baixa. O sintoma típico dessa situação é a incapacidade de manter a frequencia de 60 Hz.
  8. Evidentemente, se tivéssemos mais usinas, mesmo sem reservatórios, o esvaziamento de cada uma seria menor. Portanto, o que o gráfico mostra é que o sistema está subdimensionado.

O gráfico II abaixo mostra, traduzido em energia, as hidrologias ocorridas desde 2007 comparadas com todos os anos do histórico ordenados da menor hidrologia para a maior.

O que é importante notar nesse gráfico:

  1. Não houve uma maldade de São Pedro. Muito ao contrário. Há mais anos chuvosos do que secos.
  2. Portanto, o declínio do gráfico anterior não é devido a uma sequencia de hidrologias severas, como poderia parecer. Ao contrário, no período 2009 – 2015, apenas 2012 e 2014 se encontram abaixo da média.
  3. O ano de 2014 não é o pior da história. Nos anos em vermelho do gráfico há dois anos consecutivos da década de 50, o que mostra que, na base histórica do setor, há registros piores do que o atual.

O gráfico III abaixo mostra a evolução do percentual da carga atendida por energia de térmicas, onde fica evidente a mudança ocorrida após o anúncio da medida provisória 579 que reduziu artificialmente as tarifas.

O que é importante notar nesse gráfico:

  1. Em termos médios, a estratégia de uso de usinas térmicas permaneceu a mesma desde 2004. Apesar de todo indicativo da redução da reserva em relação à carga mostrada no gráfico I, a metodologia foi insensível a essa mudança.
  2. A descontinuidade de setembro de 2011 é um desempenho estranho a modelos matemáticos na determinação do uso das térmicas.
  3. Grandes são os indícios de que ocorreu uma mudança brusca na política de operação após a MP579.
  4. Há fortes sinais de que o uso de usinas térmicas foi mantido reduzido inclusive no ano de 2012, apesar da piora do indicador de reserva mostrado no gráfico I.
  5. No ano 2012, de hidrologia abaixo da média, registrou-se o inclusive o desligamento de térmicas antes do anúncio da MP 579.
  6. Essas anomalias só podem ser explicadas através de duas hipóteses, ambas muito graves: I – Ingerência política na operação ou II – Erros na formação do custo marginal, o indicador de uso de geração térmica.
  7. Essa última hipótese colocaria em dúvida todo o critério de garantia e todas as grandezas comerciais do modelo vigente no país. O sistema não teria a garantia que diz ter e que cobra ($) dos consumidores.

O gráfico IV abaixo é a carga total do sistema desde 2004.

O que é importante nesse gráfico:

  1. Não há evidências de que tenha havido um aumento significativo do consumo advindo da redução tarifária de 2013. A tarifa brasileira continuou muito cara.
  2. Isso desmonta a tese de que o que “esvaziou os reservatórios” foi o aumento de consumo.
  3. Na realidade, esse esvaziamento foi causado muito mais pela “misteriosa” redução da geração térmica até a medida provisória de 2012.
  4. O mercado de energia já está demonstrando outra retração. Ela ocorre principalmente no setor industrial pesado que, ou não consegue refazer os contratos, ou prefere vender seu direito de consumir e fechar a produção de sua fábrica.

Os gráficos V e VI abaixo mostram as tarifas médias sem impostos desde 1995, data de implantação desse modelo mercantil ainda vigente. O dado da tarifa industrial é a praticada no mercado cativo das distribuidoras (pequena indústria). O grande consumidor industrial não está nesse mercado das distribuidoras, tendo migrado para o livre.

O que é importante notar nesses gráficos:

  1. Com os aumentos esperados para 2015, sem contar com as bandeiras tarifárias, a tarifa residencial estará 52% mais cara do que era em 1995. (Suposta uma inflação de 6,5% em 2015).
  2. Com os aumentos esperados para 2015, sem contar com as bandeiras tarifárias, a tarifa industrial estará 115% mais cara do que era em 1995. Chamamos atenção para o fato de que a pequena indústria é a que paga esse aumento.
  3. Nota-se claramente a mudança de política mais favorável ao setor residencial no período Lula.
  4. O Ministério em nota[1], afirma que, se a compulsória redução tarifária de 2012 não fosse adotada, a tarifa iria ser 90% mais alta. Tomando ao pé da letra a declaração, teríamos uma tarifa residencial no entorno de R$ 890/MWh, já com os impostos. Mesmo com o dólar a R$ 2,90, isso colocaria o Brasil como um dos três mais caros países do planeta!
  5. Esse manifesto provoca outro questionamento: Como explicar que, sob as regras de mercado criadas em 1995 e mantidas na reforma de 2004, a tarifa iria duplicar? Como explicar que, no Brasil, ao contrário de todos os exemplos mundiais, sé se consegue reduzir tarifa entregando MWh das usinas antigas quase de graça? Como explicar que a política tarifária brasileira exige o tombo financeiro de uma empresa como a Eletrobras?
  6. Os “picos negativos” de redução de 2013 e 2014 já foram anulados e a trajetória ascendente anterior foi retomada. Essa redução do faturamento se deve exclusivamente às linhas e usinas da Eletrobras, que, foi obrigada a aceitar as condições da renovação das concessões, o que significa gerar 1 MWh por menos de R$10. A empresa, de forma inédita, perdeu 70% do seu valor.

 

O gráfico VII mostra a evolução do PLD (preço de liquidação de diferenças) desde 2003. Esse parâmetro é o paradigma de preços no mercado livre. Ao contrário do que pode indicar o nome, sob esse preço se liquidam “certificados” de energia definidos pelo governo e geração real. O PLD não é um preço negociado entre ofertantes e demandantes. É o preço definido pelo operador do sistema para liquidar valores virtuais e reais. Por exemplo, usinas que possuem o certificado de garantia e não geram, liquidam essa diferença pelo PLD. Esse preço nada mais é do que o Custo Marginal de Operação, um valor que nada tem a ver com a lei de oferta e procura. Estranho, mas é isso o que está implantado no Brasil.

Quando o sistema apresenta equilíbrio entre oferta e demanda, há uma grande probabilidade de que esse valor fique bem abaixo da média. Essa característica, exclusiva da singularidade física do setor brasileiro, induz um “comportamento” de contratos especulativos de curto prazo. Qualquer sobra de certificado acaba “indexada” ao PLD.

É preciso entender que o atual alto nível de custo do setor tem uma relação direta com o que ocorreu no passado.

O que é importante notar nesse gráfico.

  1. Os quadros mostram os valores ínfimos que foram atingidos em diversas épocas desde 2003.
  2. O quadro azul mostra o menor valor atingido no período 2003 – 2007.  Nesse momento era liquidada por PLD a energia das estatais, descontratadas compulsoriamente. Não é surpresa perceber que o mercado livre, que tinha poucos consumidores em 2003 saltou para quase 800 em 2007. Grande prejuízo gerado na Eletrobras. Tudo isso era previsível!
  3. O quadro amarelo, ocorrido logo após um “susto” causado por uma combinação de fatores hidrológicos, importação da Argentina e da Bolívia, mostra preços irrisórios já no trecho em declínio do gráfico I.
  4. O quadro em vermelho mostra preços ainda mais baixos às vésperas da atual crise. No ano de 2011, 25% dos “contratos” do mercado livre eram liquidados mensalmente. Ao contrário do que poderia parecer não se tratava de pequenas diferenças, mas sim de quase 30% de toda energia negociada nesse ambiente.
  5. Infelizmente a transparência do mercado livre não permite que essa característica do comportamento do mercado livre seja analisada. Não há dados disponíveis para os anos anteriores a 2011.

Seria possível uma outra situação?

Suponha que, reconhecendo a crise delineada desde 2009, ao invés de manter o despacho térmico baixo até 2012, fosse adotado o alternativo da tabela abaixo.

Reparem que as maiores diferenças estão em 2012, o ano do anúncio da MP 579. A curva do gráfico 1 seria a que está abaixo. Mesmo em 2014, com geração térmica menor, estaríamos com uma “poupança” energética o dobro da atual.

Conclusão.

O que quer dizer tudo isso?

  • Há sérios indícios de que o modelo de formação de preços não é sensível às mudanças estruturais do sistema de reserva.
  • Perda de eficiência das hidroelétricas? Assoreamento dos reservatórios?
  • O atraso de obras pode estar “induzindo” um otimismo na gestão dos reservatórios. Conta-se com uma usina alguns meses a frente e ela não consegue funcionar. 
  • O problema não está apenas na operação, mas também no tipo de sistema que é entregue para ser operado.
  • É preciso chamar a atenção de que a curva é a relação entre a reserva e a carga. Portanto, esse trajeto poderia ser atingido também por ações pelo lado da demanda, tais como redução de perdas da distribuição e a adoção de geração distríbuida, tal como a solar. Portanto, não é apenas o uso de térmicas que está em jogo.
  • Depois da experiência de 2014, o sistema será gerido do mesmo modo?
  • Se alguma lição for aprendida, é preciso reconhecer que o “termômetro” está quebrado.
  • No mínimo, é preciso rever as garantias físicas de todas as usinas.
  • Faltam usinas!
  • A carga, a esquecida variável do denominador, aguarda providências.

 

Esperamos que essa sequência de dados tenha tornado claro que parte da dívida que o TCU avaliou em R$ 60 bilhões (que não para de crescer) está relacionada ao fato de que esse mesmo sistema que cobra dívidas bilionárias do consumidor “liquidou” energia por valores irrisórios até 2011.

Consideradas as dívidas das geradoras hidráulicas, as perdas de valor da Eletrobras, os valores de indenização e aportes do tesouro, esse valor já ultrapassa R$ 100 bilhões, quantia superior a toda a receita da privatização de empresas do setor ocorridas na década de 90.

Numa interpretação ampla e atemporal dos fluxos financeiros do setor, os recursos que hoje faltam foram capturados no mercado livre no passado. Essa captura se deu de forma totalmente legal e legítima. O nosso bizarro modelo permite isso!

O que pode parecer uma qualidade, na realidade mostra que o modelo vigente têm características absolutamente equivocadas e que, mais cedo ou mais tarde traz prejuízos a todos os setores.

O país precisa discutir profundamente as decisões tomadas nos últimos anos. Pequenas reformas não resolverão o problema.

Outros aspectos dessa trajetória podem ser analisados no artigo abaixo:

http://ilumina.org.br/da-superficie-para-as-entranhas-um-modelo-com-defeitos-geneticos/

 

 

[1] http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2014/09/conta-de-luz-estaria-ate-90-mais-cara-sem-mp-579-diz-ministerio

 

 

 

 

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